Introdução
Em 2011, em artigo jurídico publicado, abordamos pela primeira vez o tema da ortotanásia, ressaltando tratar-se de “não antecipar o momento da morte, mas permitir tão-somente a morte em seu tempo natural e sem utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e angústia para o doente e sua família”. À época, mencionamos a Resolução CFM 1.805/2006, que estabeleceu parâmetros éticos para a conduta médica diante de enfermidades graves e incuráveis.
Já então, observávamos que algumas pessoas recorriam a escrituras declaratórias em cartório, como forma de tornar pública a vontade de não prolongar artificialmente a vida em situações de morte iminente. Algum tempo depois, foi publicada a Resolução CFM 1.995/2012, que confirmou esse entendimento ao introduzir, no ordenamento ético-médico, a figura das Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) — manifestação prévia e consciente do paciente sobre tratamentos que deseja, ou não, receber quando estiver incapaz de expressar-se. Assim, atualizamos a nossa orientação baseada naquela segunda Resolução CFM.
O tempo passou, embora sem grandes novidades no âmbito legislativo. Algumas entidades de saúde têm procurado abordar o tema, tão sensível às pessoas.
Não poderíamos deixar de mencionar o caso do genial poeta brasileiro Antonio Cicero, que em outubro de 2024 se tornou o primeiro brasileiro conhecido a fazer o suicídio assistido na Suíça, devido à doença de Alzheimer. O procedimento é permitido naquele país, mas ilegal no Brasil, e a decisão de Cicero reabriu o debate sobre a morte assistida no país. Sobre este tema, em particular, traremos em outra oportunidade, pontos que merecem toda a atenção e reflexão. Por agora, nos concentremos na DAV.
I. Marco ético e conceitual
A Resolução CFM 1.805/2006 foi o primeiro passo. Ela reconheceu que o médico pode, com o consentimento do paciente ou de seu representante, limitar ou suspender tratamentos que apenas prolonguem o processo de morte, sem benefício clínico, privilegiando o conforto, o alívio da dor e a dignidade.
A seguir, a Resolução CFM 1.995/2012 consolidou o conceito de Diretivas Antecipadas de Vontade, definindo-as como “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar sua vontade”. Essa norma, vigente desde 31 de agosto de 2012, estabelece que a vontade do paciente deve prevalecer sobre qualquer parecer não médico, inclusive o de familiares, e tornou-se a principal referência ética para a prática médica em situações de incapacidade.
II. Expansão institucional e regulatória
Após 2012, o tema evoluiu para além da esfera médica:
- Conselho Federal de Enfermagem (COFEN): com a Resolução 564/2017, o Código de Ética dos profissionais de enfermagem passou a prever o respeito às diretivas antecipadas do paciente (art. 42, parágrafo único), ampliando a observância da autonomia também às equipes multiprofissionais.
- Ministério da Saúde: a Resolução MS 41/2018 estabeleceu as diretrizes dos cuidados paliativos no SUS, reconhecendo expressamente a importância das preferências manifestadas pelo paciente — o que, na prática, incorpora a lógica das DAV ao sistema público de saúde.
E bem recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) através do Provimento 206/2025 deu um passo inédito ao inserir a autocuratela e as diretivas de curatela no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça — Foro Extrajudicial (CNN). O provimento determina que os juízes, ao processarem pedidos de interdição, devem consultar a Central Eletrônica Notarial de Serviços Compartilhados (CENSEC) para verificar se o interditando firmou escritura de autocuratela ou diretivas de curatela. Também determinou através do art. 110-A no Código acima, que a certidão de inteiro teor dessas escrituras só pode ser fornecida ao próprio declarante ou mediante ordem judicial.
O CNJ muito provavelmente se inspirou nos Tribunais do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, onde já há disciplina a respeito das manifestações antecipadas sobre tratamentos médicos (DAV), bem como da regulação da autocuratela, esta voltada à nomeação prévia de curador para questões pessoais e patrimoniais. Ambas as normativas reforçam o princípio da autonomia da vontade e a previsão antecipada de decisões em situações de incapacidade.
III. A escritura pública de DAV
A escritura de Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) — também conhecida como testamento vital — é o meio extrajudicial mais seguro para formalizar a vontade do declarante. Por meio desse ato, lavrado em cartório de notas, a pessoa plenamente capaz declara, de modo livre e consciente:
- quais tratamentos ou intervenções médicas aceita ou rejeita;
- se autoriza ou não o uso de métodos extraordinários de prolongamento da vida;
- quem será seu representante ou procurador para dialogar com a equipe médica.
Alguns cartórios integram as DAV ao registro da CENSEC, permitindo futura localização pelo médico, hospital ou autoridade judicial. Essa formalização garante publicidade controlada, autenticidade e segurança jurídica, preservando o direito à autonomia da vontade e à dignidade da pessoa humana, fundamentos do art. 1º, III, da Constituição Federal.
IV. Intersecção com a autocuratela
O Provimento 206/2025 do CNJ introduziu a obrigatoriedade de verificação de escrituras de autocuratela em processos de interdição, reforçando o valor jurídico das manifestações de vontade antecipada. Embora a autocuratela trate da nomeação prévia de curador e diretrizes sobre a administração pessoal ou patrimonial em caso de futura incapacidade — e não diretamente de tratamentos médicos —, ambas as figuras partilham o mesmo núcleo ético: o direito de decidir, enquanto capaz, sobre o próprio destino e cuidados.
V. Ausência de lei federal e segurança jurídica
Ainda que inexistam lei federal ou dispositivo no Código Civil regulando especificamente as DAV, o conjunto normativo formado pelas resoluções dos conselhos profissionais (CFM, COFEN), pelo Ministério da Saúde, e agora pelo CNJ, constitui sólido marco regulatório ético-institucional, conferindo legitimidade e respaldo jurídico às escrituras públicas de diretivas antecipadas de vontade.
Tramitou no Congresso Nacional o Projeto de Lei 149/2018, que pretendia disciplinar de modo abrangente as DAV — definindo requisitos formais, poderes de representantes e efeitos jurídicos. No entanto, a proposição restou arquivada ao final da legislatura porque não foi concluída antes do término do mandato legislativo em dezembro de 2022. Lamenta-se tal desfecho, pois, sem ações para desarquivar a proposição, o processo permanece encerrado. Para que esta proposição volte a tramitar, é necessário que uma nova solicitação seja feita e aprovada pelo Plenário do Senado.
VI. Conclusão
O desenvolvimento das Diretivas Antecipadas de Vontade reflete a maturação do ordenamento jurídico brasileiro na tutela da autonomia e dignidade humanas. Desde as resoluções do Conselho Federal de Medicina, passando pela ampliação ética do COFEN e pelas diretrizes do Ministério da Saúde, até o recente Provimento 206/2025 do CNJ, observa-se um avanço consistente na valorização da vontade previamente manifestada.
A escritura pública de DAV consolida-se, assim, como instrumento civil de expressão da liberdade e da consciência, permitindo que o indivíduo defina, em vida e com segurança jurídica, como deseja ser cuidado quando não mais puder decidir por si.
Espera-se que o Congresso Nacional compreenda a necessidade e a importância de criar um ordenamento jurídico que possa abraçar todas as normas de hierarquia inferior vigentes, facilitando o respeito à vontade e às decisões do paciente.
Jacques Malka Y Negri
11/11/2025
Malka Y Negri Advogados