Na última sexta-feira (26/9/25), a EMERJ promoveu o evento “Guarda Compartilhada e Mudança de Domicílio Internacional da Criança”, que contou coma participação do Desembargador Federal Guilherme Calmon como palestrante convidado.
A exposição trouxe importantes reflexões sobre a Declaração de Washington de 2010, documento que trata da transferência de residência internacional de famílias e que foi adotado durante a International Judicial Conference on Cross-Border Family Relocation, realizada em Washington, D.C., EUA, de 23 a 25 de março de 2010. O encontro foi coorganizado pela HCCH (Hague Conference on Private International Law) e pelo International Centre for Missing and Exploited Children (ICMEC), com o apoio do Departamento de Estado dos Estados Unidos (U.S. Department of State).
A Declaração surgiu da necessidade de estabelecer parâmetros internacionais para a análise de pedidos de transferência de residência familiar,em um contexto de crescente número de litígios transnacionais envolvendo crianças. Ela recomenda a criação de procedimentos específicos e céleres, que assegurem a proteção do melhor interesse da criança em cenários de mudança de residência para outro país.
Em abril de 2025, foi realizado o evento comemorativo “15 anos da Declaração de Washington da HCCH: Conferência sobre os avanços e perspectivas da relocação internacional de famílias”. O Brasil esteve representado pelo Des.Guilherme Calmon, que destacou a prática nacional de adotar a aferição do melhor interesse da criança como parâmetro orientador nesses casos.
A HCCH é uma organização intergovernamental que tem como objetivo promover a unificação progressiva das normas de direito internacional privado,desempenhando papel central na harmonização das regras aplicáveis a litígios familiares com repercussões internacionais.
Um dos pontos de maior interesse da palestra foi a constatação de que,mesmo em regime de guarda compartilhada, é juridicamente possível a autorização judicial para que um dos genitores fixe a residência da criança no exterior,desde que assegurada a convivência com o outro genitor e resguardado o princípio do melhor interesse.
Também foram abordados os instrumentos internacionais complementares,como a Convenção da Haia de 1980, que trata do sequestro internacional de crianças e prevê o retorno imediato ao país de residência habitual em casos de subtração ou retenção ilícita, e a Convenção da Haia de 1996, que regula competência, lei aplicável e cooperação internacional em matéria de responsabilidade parental e medidas de proteção da criança. Embora o Brasil não seja parte da Convenção de 1996, o país aplica em sua prática judicial muitos dos princípios consagrados nesse tratado.
No Brasil, ainda que não exista legislação interna específica sobre relocation,os pedidos são recepcionados e analisados no âmbito de ações de guarda ou de regulamentação de convivência, com crescente atenção às recomendações internacionais.
O tema já foi enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça em importantes precedentes:
- REsp nº 2.038.760/RJ (2022): sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi, autorizou-se a mudança de domicílio de uma criança para o exterior em regime de guarda compartilhada. O acórdão destacou que guarda compartilhada não se confunde com guarda alternada e que a fixação de lar em outro país é admissível, desde que amparada no melhor interesse da criança. Foi ressaltado o plano detalhado de convivência elaborado na sentença, prevendo retorno da criança ao Brasil em todas as férias escolares até a maioridade (com custos suportados pela mãe), ampla utilização de meios tecnológicos de comunicação e convivência presencial quando o pai estivesse na Holanda.
- AREsp nº 1.964.857/PR: a Corte entendeu que a recusa paterna, fundada apenas no desejo de não permanecer afastado do filho por longos períodos, contrariava o melhor interesse da criança, e confirmou a possibilidade de relocação.
Essas decisões evidenciam que a jurisprudência brasileira tem buscado soluções equilibradas, compatíveis com a orientação internacional, conciliando o direito à convivência familiar com a realidade da mobilidade transnacional.
Concluindo, a experiência internacional demonstra que o equilíbrio entre o direito de convivência da criança com ambos os pais e a necessidade de transferênciade residência familiar, exige soluções criativas e sensíveis às particularidades de cada caso. A Declaração de Washington, ao lado das Convenções da Haia, constitui importante marco de cooperação internacional,inspirando magistrados e operadores do direito na busca de decisões que privilegiem o bem-estar da criança acima de qualquer interesse individual.
Trazemos, a seguir, a tradução da Declaração de Washington de 2010.
Declaração de Washington de 2010
Disponibilidade de procedimentos legais relativos à relocalização internacional
1. Os Estados devem assegurar que existam procedimentos legais para requerer, perante a autoridade competente, o direito de relocalizar-se com a criança. As partes devem ser fortemente encorajadas a utilizar os procedimentos legais e a não agir unilateralmente.
Aviso prévio de relocalização internacional
2. A pessoa que pretenda requerer a relocalização internacional com a criança deve, no melhor interesse da criança, fornecer aviso prévio razoável de sua intenção antes de iniciar o processo judicial ou, quando o processo for desnecessário, antes que a relocalização ocorra.
Fatores relevantes para decisões sobre relocalização internacional
3. Em todos os pedidos relativos à relocalização internacional, o melhor interesse da criança deve ser a consideração primordial. Assim, as decisões devem ser tomadas sem presunções a favor ou contra a relocalização.
4. Para identificar mais claramente os casos em que a relocalização deve ser deferida ou indeferida e promover uma abordagem internacional mais uniforme, o exercício da discricionariedade judicial deve ser orientado, em especial (mas não exclusivamente), pelos fatores abaixo, sem ordem de prioridade. O peso de cada fator variará caso a caso:
i) Direito da criança separada de um dos pais de manter relações pessoais e contato direto com ambos os pais, regularmente, de modo compatível com o desenvolvimento da criança, salvo se tal contato contrariar o seu melhor interesse;
ii) Opiniões da própria criança, consideradas à luz de sua idade e maturidade;
iii)Propostas das partes quanto aos arranjos práticos para a relocalização, incluindo moradia, escolaridade e emprego;
iv) Motivos para requerer ou opor-se à relocalização, quando relevantes para o desfecho;
v) Histórico de violência familiar ou abuso, físico ou psicológico;
vi) Histórico familiar e, em particular, a continuidade e qualidade dos arranjos de cuidado e convivência, passados e atuais;
vii) Decisões pré-existentes acerca de guarda e convivência;
viii) Impacto do deferimento ou indeferimento sobre a criança (no contexto de sua família extensa, educação e vida social) e sobre as partes;
ix) Natureza da relação entre os pais e o compromisso do requerente em apoiar e facilitar a relação entre a criança e o requerido após a relocalização;
x) Se as propostas de convivência após a relocalização são realistas, levando em consideração especial os custos para a família e o ônus para a criança;
xi) A exequibilidade(no Estado de destino) das cláusulas de convivência impostas como condições da relocalização;
xii) Questões de mobilidade dos membros da família; e
xiii) Quaisquer outras circunstâncias que o juiz entenda pertinentes.
5. Embora tais fatores possam aplicar-se também à relocalização interna, são primordialmente dirigidos à relocalização internacional e, portanto, envolvem em geral considerações de direito internacional de família.
6. Os fatores refletem achados de pesquisa sobre as necessidades e o desenvolvimento das crianças no contexto da relocalização.
As Convenções da Haia de 1980 (Subtração Internacional de Crianças) e de 1996(Proteção Internacional da Criança)
7. Reconhece-se que as Convenções da Haia de 1980 e 1996 fornecem um arcabouço global de cooperação em relocalizações internacionais de famílias. A Convenção de 1980 provê o remédio principal (a ordem de retorno da criança) para relocalizações ilícitas.A Convenção de 1996 permite o estabelecimento e o reconhecimento (prévio) e a execução de ordens de relocalização e das condições a elas vinculadas. Facilita a cooperação direta entre autoridades administrativas e judiciais dos dois Estados envolvidos, bem como a troca de informações relevantes à proteção da criança. Respeitadas as leis internas, tal arcabouço deve ser visto como parte integrante do sistema global de proteção dos direitos da criança. Estados que ainda não o fizeram são instados a aderir a essas Convenções.
Promoção de acordos
8. A solução consensual de controvérsias sobre relocalização entre os pais deve constituir objetivo central. Mediação e mecanismos similares para estimular o acordo devem ser promovidos e disponibilizados tanto fora quanto no contexto do processo judicial. As opiniões da criança devem ser consideradas, levando em conta sua idade e maturidade, dentro dos diversos procedimentos.
Execução das ordens de relocalização
9. Ordens de relocalização e as condições a elas atreladas devem ser exequíveis no Estado de destino. Consequentemente, os Estados de destino devem considerar a emissão de ordens que repitam as ordens proferidas no Estado de origem. Quando tal competência não existir, os Estados devem avaliar a conveniência de introduzir normas habilitadoras em seu direito interno para permitir a emissão de ordens que reflitam as proferidas no Estado de origem.
Modificação das cláusulas de convivência
10. As autoridades do Estado de destino não devem extinguir ou reduzir a convivência do genitor que permaneceu (left-behind parent) salvo se ocorrerem mudanças substanciais que afetem o melhor interesse da criança.
Comunicações judiciais diretas
11. Comunicações judiciais diretas entre juízes nas jurisdições envolvidas são incentivadas para auxiliar o estabelecimento, reconhecimento, execução, replicação e eventual modificação de ordens de relocalização, quando necessário.
Pesquisa
12. Reconhece-se que são necessárias pesquisas adicionais na área de relocalização para analisar tendências e resultados em casos de relocalização.
Desenvolvimento e promoção adicionais dos princípios
13. Incentiva-se a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH) a prosseguir no desenvolvimento dos princípios enunciados nesta Declaração e a considerar aviabilidade de incorporar todos ou alguns desses princípios em um instrumento internacional. Para tanto, encoraja-se a promoção da conscientização internacional acerca desses princípios, por exemplo, por meio de capacitação e formação de magistrados e outros programas de desenvolvimento de capacidades.
Nota contextual: A Declaração de Washington de 2010 foi acordada por mais de 50 juízes e especialistas de diversos países (incluindo Brasil), presentes à Conferência Judicial Internacional sobre Relocalização Transfronteiriça de Famílias,realizada em Washington, D.C., 23–25 de março de 2010, coorganizada pela HCCH. Trata-se de documento orientativo (soft law), não vinculante.
Fonte: HCCH – 2010 Washington Declaration on International Family Relocation (tradução não oficial).
Jacques Malka Y Negri
28/09/2025
Malka Y Negri Advogados